Artigo: Carnavais, Malandros e Heróis: como a folia explica a nossa democracia?

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Por: Luciléia Aparecida Colombo

Roberto DaMatta contribuiu de forma decisiva para a interpretação da sociedade brasileira ao escrever “Carnavais, Malandros e Heróis”, em 1979, delineando as raízes de nossa cultura brasileira, bem como dos processos políticos que cotidianamente imprimem suas marcas. Uma das suas principais novidades é destacar o caráter profundamente hierárquico da sociedade brasileira, a qual busca, insistentemente, atingir os processos burocráticos e impessoalizantes, mas esbarra em tradições personalistas que demarcam a oposição: “nós e eles”.

O tensionamento presente na expressão: “você sabe com quem está falando?” relata a nossa dificuldade de tratar na esfera pública, todas as pessoas, de uma única maneira. A busca incessante de diferenciação ou para uma expressão mais concreta, “para os amigos do rei, tudo, para os inimigos, a lei” também denota que a personalização da vida social e política e é um traço marcante de nossa sociedade. Há, sobretudo, uma dificuldade adicional em separar a vida pública da privada; a casa, da rua; a impessoalidade do “jeitinho”.

Pensar o livro de DaMatta é também refletir sobre o rol de Direitos e de Deveres que temos, perante o Estado; a nossa cidadania é composta de direitos sociais, políticos e civis e de uma série de obrigações; entre o rol de tratamento do Estado para com seus cidadãos temos a isonomia, ou seja, a igualdade legal para todos, independente de classe social, gênero ou qualquer outra classificação. Mas em uma sociedade marcada por diferenças sociais graves como o Brasil, a desigualdade não se esgota na renda ou no acesso às políticas sociais: ela vai além e age no abstrato, na esfera do status quo ou na dificuldade em romper com padrões até então considerados importantes para a manutenção de uma rede de privilégios. Afinal, onde existem privilegiados, existe subserviência. E muita subserviência, cordialidade e “laços de solidariedade” – claro, entre os subservientes!

Assim, o autor retrata a figura do malandro como aquele sujeito, quase caricatural, capaz de burlar as regras impessoais impostas, criando novas regras ou, mais do que isso, usando o poder da retórica para convencer todos à sua volta, sobre seus os seus procedimentos, avessos às normativas tradicionais. É por isso que tantas vezes a figura do malandro adquire o carisma do público em telenovelas, filmes ou na literatura. Já o carnaval, assim como outras datas festivas, causa comoção e até mesmo feriado nos lugares onde é comemorado; é um rito importante, sobretudo porque promove a integração, no mesmo espaço, de ricos e de pobres. Teoricamente, é a festa popular mais democrática do Brasil, unindo celebridades e o povo. Todos podem, no carnaval, vestir a fantasia que quiser e deixar que a imaginação crie os protagonistas que mais nos interessa: podemos ser reis, rainhas, fadas, ou qualquer figura mítica. É, portanto, uma festa que converge para a alegria e a igualdade.

Mas o que a obra de DaMatta nos ensina sobre democracia? Quando pensamos o Estado como o ente capaz de atender e de acolher todas as demandas, de todas as pessoas, esbarramos, também, com a dificuldade de promover a igualdade universalizante. Afinal, quem tem poder construir uma agenda de políticas públicas, por exemplo, geralmente faz parte de uma classe de privilegiados, de protagonistas com capital social ou político para ocupar cargos públicos ou para fazer parte de movimentos sociais. Mas e o restante da população? Como promover mecanismos institucionais capazes de permitir que as demandas de todos sejam atendidas? Isso também é democracia, afinal!

São muitas dúvidas para poucas certezas, mas o fato é que a construção de uma democracia sólida vai além da personalização e da valorização do carisma: ela envolve, sobretudo, o respeito aos processos burocráticos e impessoalizantes, criados exatamente para inibir a possibilidade de diferenciação ou de privilégios. Nosso papel, enquanto cidadãos conscientes de nossos deveres, é fiscalizar os atos públicos, repudiando toda e qualquer forma de discriminação e de diferenciação social. Afinal, “você sabe com quem está falando?” não tem qualquer efeito prático, se consideramos que todos os têm os mesmos direitos, perante a lei.

*Luciléia Aparecida Colombo é taquaritinguense e Professora de Ciência Política da Universidade Federal de Alagoas.

**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas municipais, estaduais, nacionais e mundiais e de refletir as distintas tendências do pensamento contemporâneo.

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